[WARNING: This story contains sensitive themes like; sexual abuse, self-harm, depression, suicide, explicit sexual content, drugs abuse.

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Acomodado em minha existência, eu não costumo divagar sobre a minha função ou sobre o meu propósito na vida de outros seres vivos. Sou tão antigo que nem me lembro do meu nascimento, mas o meu propósito sempre foi o mesmo. Irrefutável, imutável, irreversível e inevitável. O meu papel, embora seja crucial e indispensável para a ordem natural das coisas, é bastante simples, sem muitas nuances ou explicações, mas isso do meu ponto de vista. Ao mesmo tempo também pode ser extremamente complexo, pois também pode ser interpretado, sentido e compreendido ou às vezes incompreendido de inúmeras maneiras diferentes. Vai do ponto de vista de cada indivíduo.

Desde que me entendo, a minha existência ou a minha condição irreversível de estado, tem sido o que moveu a humanidade, até onde o conhecimento de vocês o leva, a única raça pensante, a me evitar, a me almejar, a me temer, a me desejar e a me adorar. Como eu havia dito, sou interpretado de incontáveis maneiras. E isso geralmente depende de como você viveu a sua vida. O modo como você percorreu a sua trajetória nesse mundo, a forma como você aproveitou cada oxigênio inalado e cada volta do ponteiro no relógio, vai definir como nosso encontro será.

Não posso colocar na balança quem mais me almejou e quem mais me temeu, quem estava pronto e quem não estava, são comparações inúteis, porque no final, eu estive com todos eles e todos eles estiveram comigo. Seja em algum momento de suas vidas ou no encerramento delas. E parando hoje, somente hoje, para divagar sobre um ser indivíduo em especial com o qual eu tive contato, eu decidi refletir um pouco sobre ela. Sobre o nosso prévio, porém arrebatador encontro.

Ela não tinha nada de especial. Não era a garota favorita de ninguém, a filha predileta, a melhor irmã do mundo ou a melhor amiga de alguém. Não tinha talentos naturais ou uma super inteligência. Não teve muito êxito na vida e na verdade, nunca conquistou nada. Ela era comum, provavelmente tão comum quanto você.

A única coisa que talvez possa os diferenciar é a alma quebrada que a habitava e o constante anseio de se juntar a mim.

Sinceramente, eu ainda não sei explicar exatamente porque ela me intrigou. Dificilmente sou pego de surpresa em minha jornada, afinal, eu já vi absolutamente de tudo. Eu só sei que queria refletir sobre o que eu vi. O que eu exatamente vi naqueles olhos, que embora estivessem perdendo o brilho de uma vida curta, pareciam buscar algo além da minha compreensão, mas que curiosamente, eu era o único que poderia cooperar.

Eu me lembro do dia que a encontrei, e do momento que ela me encontrou.

O clima estava incrivelmente agradável naquele dia, quase perfeito, pois em muito tempo naquela cidade tórrida, o sol brilhava radiante no céu e os seus raios solares atravessavam a janela do apartamento onde ela estava, atingindo exatamente o local onde a encontrei.

Quando cheguei, passei por debaixo da pequena fresta da porta, e por ela já estar no chão, eu a enxerguei no mesmo instante. Os cabelos negros estavam espalhados pela mármore fria que beijava a pele pálida do seu pequeno corpo. Suas mãos pequenas estavam derrubadas ao lado de seu rosto e suas pernas ligeiramente dobradas e igualmente despojadas. Me aproximei devagar, sem pressa. Afinal, não havia necessidade para tal, a hora dela já estava chegando. Eu estava chegando. E estava chegando para finalmente buscá-la.

Eu estive nos pensamentos dela várias vezes. Me lembro de todas elas. Ela sempre me desejou. E em alguns desses momentos ela tentava adiantar o nosso encontro, mas a ideia ao mesmo tempo que lhe era agradável também a assustava. Ela não tinha forças o suficiente para ir até o final sozinha, pelas próprias mãos, por si só. E embora ela se achasse uma covarde para tal ato, ela gostava de pensar que eu estava ao lado dela quando ela ingeria aquelas substâncias em seu organismo para poder aliviar o seu estado mental e emocional ou quando se auto mutilava, mas como eu disse, apesar de me desejar, ela não tinha culhões para se render a mim. Mas não reclamaria se eu enfim chegasse.

Ela sempre gostou de me manter por perto, de poder se render a mim a qualquer momento. Sem remorsos ou arrependimentos. Encurtando uma vida que ela nem sequer viveu. Ela sempre esteve pronta. Pelo menos em sua mente imatura, ela acreditava que estava.

Eu parei ao lado dela para observá-la melhor. Como eu disse antes, a forma como você vive a sua vida vai definir o nosso encontro. O espelho das decisões que ela tomou em sua trajetória estava diante dela agora mesmo. E o espelho refletia a mim, mas com uma imagem distorcida.

Eu não pude evitar de sentir pena. É sempre triste colher uma alma tão jovem. Porém é sempre um alívio recolher uma alma tão sofrida. Eu sinto que estou ajudando de alguma forma, talvez isso me faça me sentir melhor por eles. Afinal, para onde eles vão não existe sofrimento, tampouco felicidade.

Mas existe algo.

O que é, eu também não sei. Não me pergunte. Sou apenas a ponte, eu não a atravesso. Apenas os guio.

A pele dela, que já era pálida o suficiente, estava em um tom diferente do usual, quase tão opacos quanto seus olhos cinzentos. Gotículas de suor faziam sua testa e pescoço brilharem e escorrendo por ele havia o conteúdo borbulhante que expelia de sua garganta.

Seu corpo convulsionava contra o chão frio, com os espasmos diminuindo a cada minuto. Seus olhos fitavam o teto, mas não focavam nele. Estavam esbugalhados e lacrimejantes. Eu sabia o que estava acontecendo, mas mesmo assim fiz uma pequena varredura ao redor. Do lado direito do corpo dela, a um metro de distância, jazia uma garrafa de whiskey quase vazia. E voltando para seu rosto pequeno e pálido, em seu nariz havia pequenos resíduos da substância que ela consumiu momentos antes, que agora circulando pela sua corrente sanguínea, formava uma combinação letal com o álcool.

Quem observasse o cenário como um todo, com olhos frios e rasos, enxergaria as causas de seu óbito como uma tentativa de me chamar, que mais uma vez ela tentou adiantar o nosso encontro, dessa vez, de propósito e com o devido sucesso. Mas como sou eu que estou analisando a situação, posso refutar a primeira impressão. Ela não pensou em mim. Eu não estive em seus pensamentos. Eu saberia. O que nos leva à seguinte questão. Por que ela fez isso?

A única certeza que eu tinha era que o consumo havia sido excessivo. E que ela nunca havia ingerido uma quantidade tão alta na vida antes.

Seja como for, eu estar ali significava que ela finalmente teria o que almejou a vida inteira, mesmo que talvez cedo demais, mesmo que não proposital.

Eu passei os olhos pelo seu pequeno corpo e ela tremelicou. Ouvi um silvo sôfrego escapar de sua garganta inundada. Estava sufocando com o próprio vômito.

A mistura de compostos e o excesso deles que seu corpo não conseguiu processar estava fazendo um caminho reverso pelo seu esôfago e atingindo sua garganta, mas como ela estava deitada, o conteúdo descia novamente, desta vez pelas suas vias respiratórias, as entupindo e impedindo que o ar passasse e preenchesse seus pulmões. Ela comprometeu o funcionamento fisiológico de seu organismo e nesse momento ela estava hipotérmica, seu coração estava atingindo em torno de 170 batimentos por minuto e subindo, aumentando suas chances de ter um ataque cardíaco a qualquer momento. Ou uma parada respiratória.

Ela não sabia que estava sufocando, se soubesse, simplesmente levantaria e terminaria de eliminar o conteúdo que seu corpo tentava expulsar.

Seu cérebro, também afetado pelo efeito tóxico dos compostos, se encontrava incapaz de distribuir as descargas elétricas de forma apropriada, dessa maneira fazendo os músculos dela se comportarem de forma desordenada. Resultando nas convulsões.

Desorientada e desnorteada, seu inconsciente a abandonou há algum tempo, deixando seu corpo lutar sozinho, tentando evitar o inevitável.

Tardiamente resumindo, ela estava morrendo.

O lapso temporal entre nós era diferente. O que para ela duraria apenas alguns instantes, para mim durava uma eternidade. Me aproximei para poder me ajoelhar ao lado dela. Olhei para meu relógio e faltava alguns minutos para eu poder cumprir o meu papel nesse mundo, mais uma vez. Até então, nada havia despertado o meu estado de interesse. Aquela cena era mais comum do que você imaginaria. E ela estava dentro dos padrões, havia cumprido todos os requisitos para ter um fim como aquele.

Uma alma despedaçada quase nunca tinha um sereno fim.

E justamente chegando perto do seu iminente fim, eu dei inicio ao melhor momento do meu trabalho. Eu passei meu braço por baixo de sua cabeça e a segurando pelo ombro, a puxei para descansar com a cabeça em meu colo. A minha função era aliviar o sofrimento dela, a permitindo não sentir absolutamente nada antes de finalmente sucumbir ao desconhecido.

Mas a temperatura do corpo dela mudou.

Ela me sentiu.

Pouquíssimas almas têm essa sensibilidade capaz de fazer a minha presença ser sentida. Elas geralmente me acompanham de bom grado e até mesmo me agradecem por ter vindo. Diziam que estavam à minha espera.

Eu removi a franja longa de seus olhos e contornei seu rosto jovem. Olhando para ela, decidi apenas esperar. Ela estava sofrendo e aquela não era uma ida bonita, mas acabaria em breve. Fitando a eterna beleza juvenil que ela conquistou no último momento de sua vida, eu decidi esperar até que o oxigênio não conseguisse mais fazer seu caminho para seus pulmões entupidos, seu cérebro perder total oxigenação, seu coração parar de bater e suas convulsões enfim cessarem. E enquanto eu esperava, o impossível aconteceu.

Os olhos dela se moveram por apenas um segundo, mas foi o suficiente para virem de encontro aos meus e foi nesse momento que eu me recordei de uma outra pobre alma que recolhi, há 7 anos atrás. Cujos os olhos eram incrivelmente semelhantes.

A partir do momento que seus olhos encontraram os meus, tive a sensação de que eles acabaram de atingir a compreensão da resposta para a pergunta que a perseguiu a vida inteira. Uma lágrima solitária escorreu pelo seu olho esquerdo e mesmo com o sopro da vida deixando seu corpo, naquele momento, ela parecia ter entendido tudo. Dizem que quando estamos diante da morte, nossa vida inteira passa diante dos nossos olhos. Não sei dizer o que se passou diante dos olhos dela. Só sei dizer que naquele momento, eu era a coisa mais preciosa do restante da vida dela.

Por um momento pensei que fosse loucura, que ela não estava de fato me vendo, mas eu me precipitei. Sim, ela estava me vendo. E sim, eu já vi aqueles olhos antes. Foi então que percebi que aquele não era o nosso primeiro encontro, mas sim o segundo. Eu estava a encontrando pela primeira vez, mas ela estava me encontrando pela segunda.

Quando retornei para a minha clara falta de entendimento, em meus braços descansava uma criança de 10 anos de idade, com cabelos negros e franja, e olhos semelhantes a duas pérolas. E diferente daquele corpo magro e gélido, esta não estava morrendo. Ela estava renascendo.

O nosso encontro, como foi dito, foi breve e arrebatador. No fundo do seu inconsciente perdido, ela me reconheceu e me abraçou. Ela me quis. Ela me desejou. Ela me agradeceu. Ela me amou. Ela, tão pequena e indefesa, se encolheu em meu colo e me abraçou com uma força esmagadora. Uma força que só quem tem uma vontade insaciável de viver possuía.

Eu fiquei confuso por um momento e acabei me perdendo no calor dos braços dela. Crianças eram puras, crianças eram milagrosas. Crianças eram esperança.

O calor, no entanto, não durou muito. Minha mente se apagou e eu esqueci porque eu estava ali. A imensidão do vazio dos olhos dela me acometeram de forma tão violenta que eu me perdi no meu próprio propósito. Perdi a noção do tempo que me era precioso e de tudo que me cercava. Fazendo da minha existência naquele pequeno metro quadrado, no mínimo questionável.

Eu não entendia o que aconteceu, mas sabia que não havia sido eu.

Foi ela.

Quando pisquei, eu estava sozinho. Meus braços estavam vazios e o frio me envolvendo novamente. Fitei o chão onde ela esteve e tentei buscar em minha mente o que eu havia perdido. Durante aquele pequeno momento de reflexão, só do que me lembrei foi de ter visto um vulto rente a porta por onde eu me rastejei. Eu tive um motivo para isso.

A observando de meu lugar, lembrei que ela estava fechada quando cheguei, porém aberta quando parti.

Foi então que me dei conta de que o que era pra ter sido fim, acabou se tornando o início.

E eu posso ser os dois, dependendo do ponto de vista.