Santuário
Atenas – Grécia
12:31 AM
Quando Mu e Shura deixaram os agentes no chalé nenhum dos dois quis prolongar a despedida, muito por causa do clima tenso que encontraram nas escadas de Touro. Assim, em um instante, Mulder e Scully se viram sozinhos naquele silêncio pesado, cheio de tudo que não chegaram a dizer.
Scully cruzou os braços, sem saber exatamente o que fazer com eles. Sentia a pulsação um pouco mais acelerada do que o normal, um sinal claro do incômodo que não queria admitir.
Mulder passou a mão pela nuca, evitando encará-la diretamente.
"Foi um longo dia..." A constatação mais óbvia do mundo.
"É, foi." Scully soltou um riso curto e sem humor. Deus, aquilo era patético.
Mulder desviou o olhar para a grande janela que dava para o jardim de Shura. O luar refletia sobre as folhas, lançando sombras longas e elegantes pelo chão. Sentia a presença dela ao lado, quente, e ao mesmo tempo distante. Ela queria dizer algo. Ele sabia disso. Sentia isso. Mas e coragem para enfrentar? Perdeu a batalha para si mesmo.
"Acho que devíamos descansar." Ele quebrou o silêncio, forçando a voz a soar neutra.
Scully assentiu, rápida demais.
"Tem razão."
Mas não se moveu.
Havia algo no ar entre eles, algo quase elétrico. Algo que não existia antes daquela noite, ou talvez sempre tivesse estado ali, à espreita, esperando o momento certo para se manifestar.
Ela umedeceu os lábios, um gesto automático. Ele notou. Pra quê ele tinha que notar? – Inferno.
"Boa noite, Mulder."
Ela se virou e entrou no quarto. Ele ficou ali, no meio da sala, sentindo um peso absurdo no peito.
"Boa noite, Scully"
Ninguém dormiu naquela noite.
xXx
Santuário
Atenas – Grécia
05:11 AM
Mulder já viveu tantas madrugadas longas e insones, aquela não deveria ser tão difícil, mas foi. Quando ele finalmente desistiu de tentar dormir, a primeira luz do sol já começava a tingir o céu. Vestiu uma blusa qualquer e saiu para caminhar, sentindo o ar fresco da manhã bater contra o rosto.
Não sabia para onde ia. Apenas precisava se mover.
"Caminhada matinal ou fuga?" A voz leve e carregada de curiosidade veio de trás.
Mulder virou-se e viu Afrodite descendo as escadas com a naturalidade de quem nunca errou um degrau na vida. O cavaleiro vestia roupas de treino e exibia um ar sereno, mas os olhos atentos entregavam que já havia lido toda a situação antes mesmo de perguntar.
"As duas coisas." Mulder respondeu, dando de ombros.
Afrodite riu de leve.
"Achei que podia ser algo sim. Estou indo para Touro treinar com Aldebaran. Devia vir junto, quem sabe ajuda a colocar a cabeça no lugar."
Mulder arqueou uma sobrancelha.
"Tá tão na cara assim?"
"Um pouco." Afrodite disse, sem esforço algum para disfarçar.
Mulder suspirou e começou a segui-lo.
A caminhada foi longa e silenciosa no início, os degraus parecendo se estender eternamente. Depois de um tempo, Afrodite quebrou o silêncio.
"Você dormiu pelo menos? Saíram da festa bem cedo na verdade, mas parece cansado."
Mulder baixou a cabeça, devia estar péssimo mesmo para os outros perceberem assim tão facilmente. Negar para quê, então.
"Na verdade não dormi muito. Você?"
Afrodite deu de ombros.
"O suficiente, acho. Aqui sempre acordamos cedo, mesmo depois de uma festa."
Mulder olhou melhor para o cavaleiro. Ele tinha um ar cansado. Ainda exuberante e belo, mas definitivamente desanimado. O sorriso que ele sempre oferecia parecia estudado, agora que ele podia observar melhor.
Lembrou-se do primeiro contato que tiveram, na casa de Touro. Eram recém-chegados e o impacto foi enorme, mas mesmo ali o rapaz parecia meio cansado. Percebeu logo o quanto os companheiros, principalmente Máscara da Morte, tentavam animá-lo e trazer o rapaz para perto. O que o levou a pensar na cena que presenciou na festa, quando chegaram com Mu. Estavam os dois cavaleiros ocupados com os preparativos, muito competentes, mas quando Máscara voltou a atenção para Scully, Afrodite praticamente murchou. Disfarçou muito bem, é claro, veio render admiração para Scully afinal, aquele era o vestido que ele mesmo escolheu para ela e presenteou, mas ainda assim, era visível o efeito que o comportamento de Máscara provocava no rapaz.
Olhando agora, esse rapaz parecia estar representando um papel de autocontrole e domínio de si absurdamente difícil de aguentar.
"Você parece estar carregando alguma coisa também." Tentou, de repente o jovem poderia desabafar um pouco.
Afrodite sorriu de leve.
"Você também. Mas eu vi primeiro."
Mulder suspirou. Não tinha intenção de abrir qualquer coisa pessoal, mas era justo, não se dispôs a ouvir? Talvez tivesse que falar também. Reciprocidade.
"Digamos que a noite foi... complicada." Disse com um humor seco. "Eu e Scully... bom, nem sempre olhamos na mesma direção. As vezes a gente discute."
Afrodite arqueou uma sobrancelha.
"Ah, vocês discutiram? Na festa parecia estar tudo bem, mas... aconteceu alguma coisa?" O cavaleiro sabia que na festa não aconteceu nada de errado a menos que o agente tenha se incomodado tanto com as atenções que Scully recebia e tenha guardado tudo para o final da noite. Mas isso seria bem ridículo, não era possível.
Mulder recuou um pouco diante da pergunta de Peixes. Não tinha resposta, se dissesse que foi por algo da festa seria uma grande mentira.
"Desculpe, agente Mulder, não quis ser tão invasivo. Mas se tiveram uma briga, preciso dizer que lamento muito. Acho que vocês dois tem uma coisa especial, de verdade."
Não queria ser invasivo mas foi, aquela afirmação acertou Mulder como um soco. Mas Afrodite não tinha como saber, ele não podia culpar o rapaz por nada.
"Não se preocupe, é só que... bom, são coisas complicadas, nós realmente não... tocamos muito nesse assunto. Mas não brigamos, acho que... deve ficar tudo bem em algum momento."
Afrodite ajeitou os cabelos no rabo-de-cavalo que usava, um gesto de impaciência perceptível para quem o conhecia melhor. Aqueles dois eram uns turrões mesmo. Sim, porque ele não iria deixar Mulder sozinho na culpa, tinha certeza de que a agente Scully era igual ou até pior que o colega. Mas que coisa!
"Então, qual é o problema? Só teimosia ou medo?"
Mulder soltou um riso curto. Garoto sagaz, esse. Só falta olhar para si mesmo.
"Um pouco dos dois, talvez." Depois de um instante, lançou um olhar especulativo ao outro. "E você? Qual é a sua desculpa?"
Afrodite fingiu surpresa.
"Eu? Nenhuma. Sou o próprio retrato da estabilidade emocional."
Mulder ergueu uma sobrancelha. Até parece.
"Sei. Então o que foi aquilo ontem quando chegamos na festa, quando Máscara olhou para Scully?"
Afrodite não respondeu de imediato. Seus olhos azuis analisaram Mulder com um brilho astuto mas dava para ver alguma apreensão também.
"Nossa. Foi tanto assim?"
Mulder apenas sorriu de canto.
"Eu sou observador, é o meu ofício."
Afrodite soltou um longo suspiro, balançando a cabeça. Foi pego no pulo, mas esse é um jogo para dois. Ou mais.
"Sabe, agente Mulder, você se engana se acha que não dá para perceber o mesmo em você. A maneira como você olha para sua parceira quando acha que ninguém está vendo... você pode esconder dela, mas isso não dura muito tempo."
Mulder abriu a boca para protestar, mas fechou novamente. Porque, no fundo, sabia que Afrodite tinha razão.
"Cego guiando cego." Resmungou, divertido.
Afrodite riu.
"Bom, pelo menos estamos achando graça agora. Podemos reconhecer que somos um desastre. Já é um começo..."
A caminhada continuou, as escadarias ainda intermináveis, mas agora menos pesadas. Ambos haviam compartilhado mais do que gostariam, mas talvez, de alguma forma estranha, isso os tivesse aliviado um pouco.
Ao chegarem à Casa de Touro, foram recebidos por Aldebaran, que já estava do lado de fora, braços cruzados e um sorriso fácil no rosto.
"Ora, ora, mas olha só quem resolveu sair cedo da cama." Disse, admirado de ver Mulder de pé tão cedo depois de uma noite de festa.
"Digamos que ficar cama não era uma boa perspectiva hoje." Mulder ofereceu sem muito humor.
Aldebaran assentiu, como se de alguma forma pudesse adivinhar o motivo daquele desconforto. Bom, já fazia uma boa ideia, ele e Mu se cruzaram logo cedo também.
"Bom, se veio clarear as ideias escolheu o lugar certo. Treinar ajuda a resolver metade dos problemas da vida. A outra metade... bem, às vezes a gente já sabe o que fazer, só não quer admitir." Disse, casualmente.
Mulder abriu a boca para retrucar, mas ficou sem palavras. Afrodite, por sua vez, soltou um suspiro, aquele era mais um dos socos metafóricos de Aldebaran que até ele sentiu.
Aldebaran riu.
"Eita, acertei alguma coisa aí?"
Mulder bufou, cruzando os braços.
"Você fala como se fosse fácil."
O cavaleiro deu de ombros.
"Difícil é aceitar que a resposta sempre esteve aí. O resto é só enrolação."
Mulder e Afrodite trocaram um olhar, ambos derrotados pela simplicidade absurda daquela frase.
"Tá legal, e o que eu faço com isso agora?" Mulder perguntou, exasperado.
Aldebaran riu alto e deu um tapinha amigável no ombro dele.
"Começa alongando. Depois a gente vê o que dá pra consertar."
Mulder revirou os olhos, um tanto indignado com o jeito descomplicado do cavaleiro de Touro. Mas pela primeira vez em horas sentiu que respirar parecia um pouco mais fácil.
xXx
Santuário
Atenas – Grécia
07:29 AM
Scully despertou com a luz do sol já entrando pela janela do quarto. Não tinha ideia de que horas eram, mas pelo silêncio no chalé, Mulder provavelmente não estava.
Virou-se na cama, sentindo o corpo ainda pesado de cansaço, mas a mente disparada. Tentava organizar os pensamentos, mas eles vinham todos de uma vez, se atropelando, como se tudo precisasse ser decidido ali, naquele momento.
O que faria com tudo aquilo?
Ainda tinha exames para analisar, informações a conectar, mas também havia algo mais imediato: sua relação com Mulder. Ok, nada de comprometedor foi dito ou feito de fato mas pareciam ter chegado a um ponto sem retorno, e ela ainda não sabia como lidar com isso.
Suspirou e sentou-se na cama, passando as mãos pelo rosto. Pensar demais nunca ajudava. Mas evitar pensar também não era uma opção.
Precisava se mover. Precisava de alguma distração antes que sua cabeça explodisse.
Levantou-se, decidida a sair daquele quarto e começar o dia. O que quer que viesse a seguir, resolveria quando fosse a hora certa... ou quando não houvesse mais como evitar.
Saindo do quarto, ouviu o som de passos na entrada do chalé. Poucos segundos depois, ouviu uma batida leve na porta.
"Agente Scully?" Era Aiolia "Você está acordada?"
"Sim, já vou." Ela abriu a porta para o cavaleiro de Leão.
Aiolia deu um passo hesitante para dentro, era sua timidez inicial como sempre. Mas o olhar rápido e atento dele não deixou passar o cansaço no rosto dela, nem a tensão evidente em seus ombros.
"Desculpe comentar, mas... você parece cansada. O que houve, não dormiu bem? Aconteceu alguma coisa depois da festa?" Ele perguntou, genuinamente preocupado.
Scully soltou um suspiro curto.
"Não é nada, não se preocupe. Só não dormi direito, está tudo bem."
Ele não pareceu convencido, mas também não quis pressioná-la. Em vez disso, mudou de assunto.
"Bem, vim te buscar para o café da manhã. Atena pediu para que você se juntasse a nós."
Scully assentiu, agradecendo o desvio de foco.
"Ok me dê uns minutos, sim? Vou me arrumar e já volto."
xXx
O café da manhã já estava servido no terraço do Salão do Grande Mestre quando Scully chegou acompanhada de Aiolia Saori já estava acomodada, com Camus ao lado, e cumprimentou a agente com um sorriso gentil, mas Scully percebeu que ela parecia meio... abatida. Talvez não tenha dormido bem. Talvez tenha ficado com muita coisa na cabeça, assim como ela.
Camus, ao contrário, parecia relaxado mas de algum jeito mantinha um olho atento especialmente em Saori. Não de maneira óbvia, mas ainda assim dava para perceber.
Minutos depois, Kanon e Mu chegaram juntos para completar a mesa. Kanon manteve a postura tranquila de sempre mas de guarda fechada, seja pelo olhar treinado de Camus sobre ele ou pela presença de Saori que lamentavelmente não conseguia evitar as próprias reações na presença do guardião. Felizmente ele se manteve neutro, uma forma elegante de poupar a menina de constrangimentos e de preservar os companheiros. O cavaleiro não deu espaço para que qualquer tensão se formasse na mesa, virou-se direto para Scully.
"Agente Scully, aquele material que trouxemos do Japão está na biblioteca, e temos a sala de redes à disposição para as pesquisas." Pegou um pedaço de fruta e continuou de forma natural. "Toda a comunicação daqui é criptografada, então pode trabalhar sem preocupações." Limpou os dedos no guardanapo antes de continuar. "Mas se quiser, pode me acompanhar no voo de hoje. Seria interessante trabalharmos juntos nessas análises e, na Fundação, temos mais recursos. Devo ficar por lá esses dois dias, podemos voltar para o encerramento das festividades."
A mudança de foco foi tão rápida que ninguém na mesa teve tempo de reagir. Se era intencional ou não, ninguém saberia dizer, mas funcionou.
Scully ponderou por um momento. Era uma boa ideia. Fazia sentido. Mas ela deveria simplesmente pegar um voo sem avisar Mulder? Seria covardia? Talvez. Mas, ao mesmo tempo, se ficasse, teria que encarar a situação que vinha evitando desde a noite passada. Fugir nunca foi sua primeira escolha, mas dessa vez... talvez não fosse uma má ideia.
E a verdade? Ela queria ir. Precisava focar no trabalho, entender melhor o material que levantaram, descobrir mais sobre o que estava acontecendo. E se passasse alguns dias longe do Santuário, talvez as coisas até se acomodassem melhor.
"Vou aceitar sua oferta, Kanon." Disse, forçando um sorriso leve para disfarçar a própria hesitação. "Acho que teremos melhores chances de obter respostas."
Camus continuou tomando seu chá, mas seu olhar ligeiramente analítico indicava que havia percebido a hesitação na decisão dela. Saori não disse nada, apenas assentiu de leve.
Scully pediu licença da mesa, alegando que precisava se preparar para a viagem. Kanon se levantou também, pronto para acompanhá-la.
Assim que eles saíram, Aiolia soltou um suspiro e cruzou os braços.
"Quando passei para trazer a agente Scully, o agente Mulder não estava. E ela estava de um jeito..." O rapaz falhou em não parecer especulativo "Acho que aconteceu alguma coisa entre eles."
Mu baixou o olhar para a fruta que comia, sem dizer nada. Sabia mais do que os outros mas não cabia a ele comentar nada.
Já Camus voltou-se para Aiolia e sorriu de leve, já esperava aquela observação.
"Você pode estar certo, Leão. Só que nem tudo precisa de intervenção." Disse, voltando a atenção para sua xícara. "Algumas coisas só precisam de tempo."
Aiolia relaxou um pouco, considerando aquilo. Talvez tivesse sido um pouco rápido demais em querer adiantar a situação. Ele assentiu devagar.
"É... acho que você tem razão." Deu um meio sorriso. "Mas haja paciência. Pra mim isso não funciona, tempo demais também estraga."
Camus soltou um leve riso.
"Pode ser, mas não mexa em nada, ok? É melhor."
Saori tinha o olhar distante mas estava ouvindo e absorvendo tudo, pensando no que faria se fosse com ela. – Nada, provavelmente. – A jovem suspirou. Com a festa ainda acontecendo na vila não teria o mesmo nível de ocupação de todos os dias, mas a perspectiva de ócio a fez estremecer internamente. Seria um dia inteiro na companhia de Saga, estudando ou apenas passando o tempo na Ágora do templo. – Elevação de espírito, certo...
Camus e Mu se entreolharam, ambos percebendo que a jovem estava provavelmente pensando no que não devia. Era de dar pena, realmente. E não podiam fazer nada para ajudar.
TO BE CONTINUED...
