_ Coryo. - Minha mão tremeu na maçaneta.
Mesmo a casa estando quase completamente escura, tendo apenas um abajur ligado, minha concentração não estava no ambiente, já que poderia ter visto Tigris sentada na poltrona em volta de todo tipo de sacolas.
Então as roupas chegaram, até que são rápidos.
Entrei e fechei a porta, me aproximando da garota de nariz pontudo e olhos tão azuis quantos os meus.
Lady-Vó já deveria estar dormindo ou estava se observando no espelho quebrado de seu quarto, apreciando algo que não estava mais ali, em seu rosto.
_ Por que ainda não foi dormir? - Ajoelhei-me a sua frente, segurando suas mãos com calos, isso me deixava um pouco desemparado.
Suas mãos eram joviais dez anos atrás, mas agora eram tão ásperas quanto as minhas e isso não a deixava menos atraente para os possíveis pretendentes.
_ Estava esperando você. - Concordei. _ Para fazer algumas perguntas.
_ Quais perguntas, senhorita Snow? - Sorriu, mas não alcançou os olhos.
_ Primeiro, queria saber o motivo de ter pegado as roupas da titia, sei que você tem um carinho imenso por elas. - Engoli em seco. _ Por isso que você sempre lava elas quando o cheiro de mofo já está purgante.
Abro minha boca para explicar, mas não tinha explicação para isso e ela percebeu.
Sentei-me no chão como um garotinho ganhando a bronca de sua mãe, por fazer um desenho estranho ou quebrar o vaso preferido de sua vó.
_ Não tenho uma resposta satisfatória para isso. - Alisei meus molares com a língua. _ Apenas quis emprestar. - Encolhi as pernas e apoiei meus braços nos joelhos.
_ Então, a segunda pergunta é o porquê de você ter a levado para o seu banheiro já que temos os banheiros sociais.
_ São pequenos e não tem nada neles. - Cruzou as pernas. _ Estava com preguiça de levar as coisas para o banheiro social. - Desviei seu olhar.
Porém, seu risinho foi o suficiente para entender o que ela estava pensando, mas não iria confirmar ou dizer que ela estava louca.
Cada vez que tocássemos nesse assunto, mais forte suas posições se tornariam, o que poderia acabar com a minha reputação.
Seu pé cutucou minha mão e tive que olhá-la.
_ Ela me disse que podemos começar a reforma e podemos contratar tudo que perdemos. - Sabia disso. _ Coryo, estou muito agradecida por ela estar fazendo isso, mesmo sabendo que você é a Lady-Vó são opostos.
_ O que você quer que eu diga? Sabe como odeio ser bancado e ser inferior. - Meus olhos ardiam. _ Estou aguentando isso por nós, por nossa família.
_ Sei que sim, mas a Juníper não é ruim e parece que seu interesse é mais forte que seu ódio infundado. - Ela só pode estar brincando. _ Coryo, o que você quer fazer?
Fiquei confuso com suas palavras, tentando entender o que ela queria dizer, mas nada fazia sentido no momento.
Seu dedão do pé continuou me cutucando, me fazendo lembrar de um dedo indicador que se afundava em minha costela.
Merda! O que é isso? Ela virou piolho para grudar em meus pensamentos?
_ O que você vai fazer com o pedido dela? - Que pedido? _ Ela quer que a senhorita Gray vença, mas se isso acontecer, ela vai morrer.
_ Ela tem o apoio do presidente e da senhora Gaul. - Inclinou-se para frente e pegou meu rosto com suas mãos.
_ Eles só querem usá-la e quando tirarem cada gota, ela estará sozinha nesse mundo, ou estará morta no final dos Jogos. - Franzi o cenho. _ Ela só tem você para confiar no momento.
_ Juníper não quer vencer, ela prefere morrer para proteger a Gray, não posso fazer nada. - Seus lábios se uniram em uma única linha. _ Afinal, também sou mentor da Gray.
_ Você é bom, Coryo. - Não, acho que não sou. _ E sei que isso pode mudar. - Parecia infeliz. _ Sabe que pode contar comigo, não sabe?
_ Sempre irei contar com você. - Peguei suas mãos e a encostei na testa, tentando não demonstrar os meus pensamentos.
Juníper estava certa quando falou que os inimigos precisavam cair, mas estava errada em proteger a Gray.
Ela seria sua ruína como a Juníper seria a minha, e não me importava de sujar minhas mãos para que ela não fosse esquecida.
Ainda não sei o motivo desses pensamentos estúpidos, mas sei que vou descobrir e irei arrancá-los com uma faca afiada.
Não me importava com a dor há anos e não será agora que irei me importar, apenas precisava que ela sobrevivesse até que eu pudesse descobrir os nomes dessas emoções.
Mas, ela irá me perdoar quando aquela garota do circo se for?
⊰᯽⊱┈──╌❊╌──┈⊰᯽⊱
Sempre que me aproximava da Academia, as pessoas cochichavam a meu respeito, mas não sabia se estavam curiosas por ser o sortudo com dois tributos ou simplesmente por estar usando um terno tão elegante.
Não iria parar para tentar entender seus pensamentos, precisava chegar a tempo para a aula do reitor, ou aquele chapado poderia me tirar como mentor.
O que sei que ele iria adorar fazer e cada vez que esse pensamento rodava em minha mente, sabia que as palavras de Juníper não estavam equivocadas.
Provavelmente seria capaz de acabar com aquele homem, mesmo que apenas por pensar nisso fosse motivo de repulsa.
Antes que pudesse vomitar por isso, os degraus que poderiam suportar todos os alunos da Academia foram apresentados e tive que subir um por um com elegância que já estava enraizada em meus ossos.
Os sapatos de couro não estavam machucando a cada passo, o terno não estava desbotado e nem um único grão de poeira podia ser visto.
Até minha pele e cabelos estavam na tonalidade perfeita, sem oleosidade ou olheiras.
O dia estava perfeito demais e a perfeição sempre me apunhalava pelas costas.
Seja pelo sol quente e o céu tão azul quanto a água cristalina do chafariz central, seja os carros dando a volta, ou parando para deixar ou buscar as pessoas.
Perfeito demais, nem parecia que estava acontecendo os Jogos e que as pessoas estavam em um zoológico que poderiam morrer de insolação ou desidratação.
Parei no último degrau, tirando a emoção cortante de correr e saber se ela estava bem.
Juníper era apenas um distrito, uma qualquer e não merecia a minha atenção... Precisava me lembrar disso constantemente.
Continuei a minha caminhada e entrei na Academia, com escadas imensas, alunos conversando e alguns correndo para fazer alguma coisa.
Até o cheiro de comida me fazia revirar os olhos de prazer, esse lugar me salvou tantas vezes que poderia dizer que era a minha segunda casa, se não fosse por ter algumas pessoas detestáveis.
Os meus passos foram em direção da escadaria lateral, com madeira tão polida que poderia ver meu reflexo.
Alguma coisa eles deveriam apresentar como beleza nesse lugar, já que todos estavam quebrados financeiramente... Quase todos.
A sala de aula estava aberta, mostrando que ainda não havia começado a aula, mas o reitor já estava ali, demostrando sua impaciência por mim.
Ainda não sabia o motivo de seu ódio, mas sei que vou descobrir e vou vê-lo despencar como ele tanto queria fazer comigo.
Dei batidinhas na porta branca, chamando sua atenção que já estava em mim, sem que seus olhos se levantassem de fato.
_ Atrasado e sem uniforme, acha que seu sobrenome vai salvá-lo? - Aproximei-me. _ Não dei permissão...
_ Acabei me atrasando por tirar medidas do meu novo uniforme, já que aquele acabou rasgando quando cai. - Sorri. _ Desculpe-me, reitor.
Seu bigode grosso e que poderia ser comparado com uma taturana se mexeu, mas não falou mais nada mediante a esse assunto.
Continuei meus passos e subi os degraus para me sentar ao lado de Clemencia, minha dupla em todas as aulas.
A cadeira do reitor virou para que pudesse continuar constatando as mudanças em meu corpo.
_ Aquilo foi vergonhoso. - Todos pararam de escrever. _ O que deu na cabeça para entrar no caminhão dos tributos e ser jogado no zoológico?
_ Queria conhecer meus tributos, queria saber os pontos fortes e fracos, para que pudesse ajudá-las. - Deixei a bolsa ao lado da minha cadeira.
_ Isso não é o que devemos fazer, apenas precisamos mostrar nosso rosto quando for necessário. - Clemencia comentou e discordei.
_ Estamos em uma competição e aquelas pessoas são tudo para nós, vocês não querem ganhar o prêmio? - Zombei. _ Se não quiserem, podem desistir e ficarei grato com o prêmio em mãos.
_ Snow... - Lívia Cardew parecia me dar um ultimato. _ Foi vergonhoso e deveria ser demitido, isso não seria trapaça?
Essa desgraçada só pode estar brincando comigo, ela pensa que era quem para dizer isso? Ser demitido do meu cargo? Só se ela fosse demitida primeiro.
_ Que eu saiba, Cardew. - Tentei deixar o ódio fora das minhas palavras. _ Não trapaceei, apenas estou fazendo o papel de mentor, como fui designado.
_ E o que tudo isso importa no final? - Olhei para Sejanus. _ O que importa tudo isso? Isso não deveria nem existir para começo de conversa, são pessoas, humanos e estaremos rindo quando eles morrem.
Não queria debater com ele, suas convicções e ideias são diferentes das minhas, mesmo sendo um conhecido não queria dar palco para a minoria.
Mesmo sendo pessoas e que iriam morrer no final, o que isso importava de qualquer forma? Não é como se fosse nós que começamos tudo isso, que começamos a guerra.
Parece que todos se esqueceram o motivo disso começar, qual era o real propósito dos Jogos. Era para que eles não se esquecessem da guerra, de como ficamos na outra extremidade de poder.
Sejanus nunca iria entender isso, ou entenderia tarde demais, quando a corda estivesse em seu pescoço.
_ Os Jogos deveriam parar. - Continuou.
_ Talvez precise ser reformulado. - Comentei e o reitor quase cuspiu sua morfina. _ Tudo é ridículo e a infraestrutura é nojenta. - Respirei fundo. _ Sejanus está certo, eles são humanos e deveriam ser tratados como tal.
_ E o que o senhor sugere? - Olhamos para cima e lá estava ela, a Idealizadora, Volumnia Gaul.
_ Volumnia, ele só está dizendo coisas delirantes, talvez o terno que está vestindo tenha pressionado o cérebro dele.
_ Isso não é problema seu, Casca. - Sempre tão feroz. _ Quem é a Idealizadora sou eu, e você apenas deu a ideia, não tem o direito de dizer o que devo ou não fazer nos meus Jogos.
_ Ainda estou na minha aula. - Volumnia não se importou e olhou para mim.
_ Continue, quero saber o que pensa sobre os Jogos e o que deveria mudar. - Levantei-me para ser o mais respeitável possível.
_ A senhora precisa que o público goste dos tributos para que ganhe mais dinheiro com isso. - Não discordou. _ Mas como podemos torcer por aquelas pessoas se nem mesmo a conhecemos direito?
_ E por que precisamos? - Clemencia já foi inteligente. _ Irão morrer no final.
_ Para que eles torçam para os tributos, isso é um Jogo e jogos precisam ter competições, apostas...
_ É ilegal. - Sejanus só aparece quando quer dizer alguma lei.
_ Podemos excluir isso para o Jogos, apenas que a senhora deveria começar a conversar com o jornal local para que o apresentador seja mais carismático e menos robótico.
_ Mais alguma coisa, senhor Snow? - Cruzou os braços. _ Parece que as minhas ideias estão ultrapassadas em sua cabeça.
_ Não, senhora, apenas que já se passou dez anos desde o primeiro Jogo e não mudou muito. - Mesmo que não me lembre dos outros. _ E eles deveriam ter condições melhores, ser apresentados para todos em Panem e...
_ Acho que uma de suas passarinhas mudou sua cabeça. - Virou-se para sair. _ Escreva tudo e me entregue depois, suas ideias podem revolucionar os Jogos, senhor Snow.
Antes que o sorriso em meu rosto começasse a se formar, Clemencia se levantou e tentou roubar o que era meu.
Aquilo era o meu mérito, minhas ideias e não me importava de fazer dupla com ela, mas isso não tinha nada a ver com a garota.
_ Tudo bem, vocês dois irão me trazer o que pedi. - Concordei. _ A traga para mim, Snow. - Fiquei confuso. _ Você sabe de quem estou falando.
Saiu antes que pudesse perguntar de quem estava falando, mas a imagem da Juníper apareceu em minha mente, acabando com a sensação agridoce em meu peito.
Não queria vê-la, não agora, mas parecia que o destino queria que eu a visse todos os dias, mesmo não querendo isso.
Sentei-me e o reitor estava pensativo, como se tudo que ele não quisesse que acontecesse nos Jogos, fosse acontecer.
_ Sigam as palavras do senhor Snow. - E o burburinho se instalou.
_ O quê? - Aracne Crane deu um grito tão alto que quase vi estrelas. _ Não quero estar na presença daqueles selvagens, isso é um absurdo.
_ Não reclame comigo, senhorita Crane. - Todos me observaram. _ Reclame com ele. - Pegou sua morfina e a brindou no ar.
_ Você está morto, Snow. - Bateu na mesa.
Vamos ver quem vai estar morto primeiro.
